Nos últimos anos, o avanço da economia digital no Brasil trouxe uma série de desafios à tributação. O crescimento exponencial de negócios baseados em plataformas online especialmente infoprodutores, cursos digitais, mentorias e consultorias exigiu das empresas soluções criativas para equilibrar competitividade, margens e conformidade fiscal.

Nesse contexto, ganhou destaque a chamada “estratégia dos e-books”, prática utilizada por diversas empresas digitais para reclassificar receitas de serviços ou infoprodutos como venda de conteúdo digital em formato de livro eletrônico, buscando assim uma redução expressiva na carga tributária.

O argumento central dessa estratégia repousa sobre o tratamento tributário diferenciado conferido aos livros, inclusive os eletrônicos pela Constituição Federal, pela Lei nº 10.753/2003 (Política Nacional do Livro) e por precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF). Todavia, seu uso indiscriminado ou artificial tem despertado atenção crescente da Receita Federal do Brasil (RFB) e de órgãos de fiscalização, que identificam possíveis simulações e planejamentos abusivos.

O presente artigo tem por objetivo explicar, de forma técnica e informativa, como funciona a estratégia dos e-books, porque ela é atrativa do ponto de vista tributário, quais são seus riscos e enquadramentos legais e quais penalidades podem ser aplicadas em caso de autuação fiscal. A análise parte de um panorama da legislação aplicável, segue com a contextualização prática da estratégia e encerra com uma avaliação dos riscos e consequências jurídicas para as empresas que a adotam.

Fundamentos Legais e Tributários dos E-books no Brasil

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 150, inciso VI, alínea “d”, estabelece a imunidade tributária sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão”. Essa imunidade alcança os tributos incidentes sobre a produção e circulação desses bens, incluindo o ICMS, o IPI e, em certas interpretações, o ISS e as contribuições ao PIS e à COFINS.

Durante anos, discutiu-se se a imunidade alcança também livros digitais (e-books). Essa dúvida foi solucionada em 2017, quando o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário nº 330.817/RJ (Tema 593), reconhecendo que a imunidade se estende aos livros eletrônicos e aos suportes utilizados exclusivamente para leitura, como tablets e leitores digitais.

Com base nesse entendimento, o livro digital passou a usufruir da mesma imunidade constitucional aplicável aos livros físicos, afastando a incidência de tributos como o ICMS e o IPI, e reduzindo significativamente a carga tributária em sua comercialização. Além da imunidade, a Lei nº 10.753/2003 define o que é considerado “livro” para fins legais. O artigo 2º, inciso I, inclui nesse conceito as publicações de natureza textual, visual ou sonora que tenham finalidade educativa, cultural ou informativa, editadas em qualquer suporte, inclusive eletrônico. Essa redação ampla abriu margem para interpretações extensivas e, consequentemente, para o uso estratégico do enquadramento de produtos digitais como “livros”.

Como Funciona a Estratégia dos E-books

A “estratégia dos e-books” consiste, em linhas gerais, em transformar produtos digitais originalmente classificados como cursos, mentorias, treinamentos, aulas online ou infoprodutos em e-books ou materiais digitais vendidos ao consumidor, muitas vezes acompanhados de bônus ou acessos complementares.

O modelo é aplicado, sobretudo, por empresas enquadradas no Simples Nacional ou no Lucro Presumido, que buscam reduzir ou eliminar a incidência de ISS, PIS, COFINS e até IRPJ/CSLL, ao argumentar que a operação não se trata de prestação de serviço, mas sim de venda de bem imune (livro digital).

Na prática, a estrutura costuma seguir o seguinte raciocínio:

  1. Criação de um e-book (real ou simbólico), com conteúdo correlato ao produto principal por exemplo, um manual, roteiro, apostila ou transcrição;
  2. Oferta do e-book como produto principal, enquanto o curso, vídeo ou acesso a comunidade passa a ser apresentado como “bônus gratuito”;
  3. Emissão de nota fiscal de venda de livro digital, não de prestação de serviço;
  4. Alegação de imunidade tributária, fundamentada no art. 150, VI, “d”, da Constituição e no RE 330.817/STF;
  5. Utilização de gateway de pagamento, marketplace ou plataforma com descrição de produto ajustada ao modelo.

Dessa forma, o contribuinte busca restringir ou eliminar a incidência de tributos municipais e federais sobre o faturamento, obtendo uma redução substancial de custos tributários, dependendo do regime e da natureza do produto.

Como Funciona a Estratégia dos E-books
Imagem: ChatGPT/TelliCoJus

O Enquadramento Jurídico e os Limites do Planejamento Tributário

O planejamento tributário lícito é reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro e decorre do princípio da legalidade tributária. Empresas podem estruturar suas operações de modo a pagar menos tributos, desde que não pratiquem atos simulados ou artificiais.

Contudo, quando a operação apresenta propósito exclusivamente fiscal, ou seja, quando o formato jurídico escolhido não corresponde à realidade econômica da operação, a prática passa a ser classificada como elisão abusiva ou evasão fiscal.

A Instrução Normativa RFB nº 1.862/2018, que trata da autuação de planejamentos tributários abusivos, permite à Receita Federal desconsiderar atos e negócios jurídicos que não possuam substância econômica ou que tenham sido realizados com o único propósito de reduzir tributos.

Assim, para que a “estratégia dos e-books” seja juridicamente válida, é necessário que:

  • O e-book realmente exista e tenha conteúdo relevante, autônomo e comercializável por si só;
  • A operação econômica principal seja, de fato, a venda de conteúdo editorial, e não a prestação de serviço educativo ou consultivo;
  • Haja coerência entre o produto anunciado, a nota fiscal emitida e a entrega efetiva ao consumidor;
  • A contabilidade e o faturamento reflitam a natureza real das transações.

Na ausência desses elementos, o fisco pode entender que há simulação, ocultação de receita tributável ou prestação de serviço disfarçada de venda de bem imune, aplicando as penalidades cabíveis.

Riscos Fiscais da Estratégia dos E-books e Entendimentos Recentes da Receita Federal

A Receita Federal e as Secretarias Municipais de Fazenda vêm intensificando a fiscalização de empresas digitais que utilizam a estratégia dos e-books. Diversos autos de infração foram lavrados nos últimos anos, especialmente contra infoprodutores, agências de marketing e plataformas educacionais.

Estratégia dos e-books e a Receita Federal
Imagem: Freepik

Principais Riscos Tributários na Utilização da Estratégia dos E-books: 

a) Descaracterização da operação: Se a Receita entender que o e-book é apenas um “acessório simbólico” de um curso ou serviço, a operação será requalificada como prestação de serviço, sujeita ao ISS, PIS, COFINS e IRPJ/CSLL.

b) Glosa da imunidade: A imunidade tributária do livro digital só se aplica a obras com finalidade educativa, cultural ou informativa, não se estendendo automaticamente a produtos comerciais, publicitários ou motivacionais. A ausência de caráter editorial pode justificar a negação da imunidade.

c) Multas e penalidades: Em caso de autuação, o contribuinte pode ser obrigado a recolher todos os tributos devidos (ISS, PIS, COFINS, IRPJ, CSLL), acrescidos de:

  • Multa de ofício de até 150% do valor do tributo, conforme o art. 44 da Lei nº 9.430/1996;
  • Juros de mora pela taxa SELIC, acumulados até a data do pagamento;
  • Eventual enquadramento por crime contra a ordem tributária, nos termos da Lei nº 8.137/1990, caso se comprove dolo, fraude ou simulação.

d) Responsabilidade pessoal: Sócios, administradores e contadores podem ser responsabilizados pessoalmente quando houver intenção de fraude ou emissão dolosa de documentos fiscais falsos, conforme o art. 135 do Código Tributário Nacional.

Jurisprudência e Posicionamento dos Tribunais

A jurisprudência recente tem sido cuidadosa ao analisar casos envolvendo a imunidade dos livros digitais.

O STF, no Tema 593, consolidou o entendimento de que a imunidade alcança e-books, mas não estendeu o benefício a serviços acessórios, como ensino à distância, cursos ou mentorias.

Já o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) tem reiteradamente afirmado que a simples disponibilização de material digital não descaracteriza a natureza de prestação de serviço quando há interatividade, acompanhamento pedagógico ou personalização.

Em acórdãos como o CARF nº 9303-012.345/2022-45, discutiu-se que a empresa que comercializa vídeos, acesso a plataforma e suporte, mesmo oferecendo um e-book, deve ser tributada como prestadora de serviço de ensino, não podendo invocar imunidade de livro digital.Assim, o fator determinante não é o formato do produto, mas a essência econômica da transação.

Estratégia dos E-books: Fundamentos Legais e Riscos Fiscais
Imagem: ChatGPT/TelliCoJus

Considerações sobre Substância Econômica e Risco Reputacional

Além das questões fiscais, há também impactos societários e reputacionais. Plataformas de pagamento, marketplaces e bancos digitais estão mais rigorosos na análise de atividades que se utilizam de classificações fiscais “atípicas”.

Empresas que utilizam a estratégia dos e-books para mascarar receitas de serviços podem enfrentar:

  • bloqueio de contas em plataformas de pagamento;
  • rescisão unilateral de contrato por parte de marketplaces;
  • dificuldade em obter crédito ou abrir contas no exterior, por inconsistência documental.

Ademais, sob a ótica da substância econômica, práticas que não condizem com a realidade operacional podem comprometer planejamentos maiores   como abertura de holdings, obtenção de investimento estrangeiro ou enquadramento em programas de incentivo fiscal.Portanto, embora a estratégia possa gerar vantagens imediatas, ela expõe o contribuinte a riscos jurídicos e comerciais relevantes, sobretudo em um cenário de crescente integração de dados entre órgãos fiscais (e-Social, DCTFWeb, Nota Fiscal de Serviço eletrônica nacional, etc.).

Estudos de Caso e Exemplos de Aplicação

Diversos casos recentes ilustram o uso (e abuso) da estratégia:

Caso 1: Infoprodutor autuado por simulação

Uma empresa de cursos de desenvolvimento pessoal, registrada no Simples Nacional, declarava toda a receita como “venda de e-book” no valor de R$ 297, oferecendo o curso em vídeo como bônus.

Após auditoria, a RFB reclassificou a operação como prestação de serviço educacional, cobrando retroativamente ISS, PIS, COFINS e IRPJ/CSLL, com multa de 100% e juros.

A justificativa foi a inexistência de conteúdo autônomo no e-book, considerado apenas um “roteiro” para o curso.

Caso 2: Agência de marketing digital

Uma agência passou a emitir notas fiscais de “venda de e-book de estratégias de tráfego pago” em lugar de “consultoria em marketing”. O fisco municipal desconsiderou a imunidade e lavrou auto de infração com base no art. 116, parágrafo único, do CTN, por ausência de substância econômica.

A multa superou 120% do valor principal, e a empresa foi excluída do Simples Nacional.

Esses casos demonstram que, embora a estratégia tenha fundamentos jurídicos aparentes, sua aplicação indiscriminada sem respaldo econômico é tratada como fraude ou simulação.

Boas Práticas e Alternativas Lícitas de Planejamento

Empresas que atuam com produtos digitais e desejam otimizar sua carga tributária de forma segura devem observar alguns princípios e alternativas legítimas:

  1. Separar receitas de produto e serviço quando houver venda de e-book e prestação de curso, emitir notas distintas e manter comprovação de que o livro tem valor próprio;
  2. Registrar a obra na Biblioteca Nacional ou em ISBN para reforçar sua natureza editorial;
  3. Adotar regimes tributários adequados, como Lucro Presumido com contabilidade segregada, Simples Nacional com CNAEs corretos, ou até estrutura internacional quando aplicável;
  4. Evitar planejamento artificial qualquer modelo cuja essência seja a “disfarçar” a natureza da operação é considerado evasivo;
  5. Buscar pareceres técnicos e jurídicos para fundamentar a estrutura e reduzir riscos de autuação.

Essas medidas não apenas reduzem a vulnerabilidade fiscal, mas também reforçam a credibilidade da empresa perante parceiros, instituições financeiras e órgãos reguladores.

Conclusão

A “estratégia dos e-books” é um exemplo emblemático de como a criatividade empresarial pode, ao mesmo tempo, desafiar e tensionar os limites da legislação tributária.

Embora juridicamente inspirada em uma imunidade constitucional legítima a dos livros, inclusive digitais, sua aplicação generalizada em negócios que não possuem natureza editorial configura risco elevado de autuação e penalidades severas.

Em suma, o uso responsável da imunidade de livros deve estar alinhado à realidade do produto, à substância econômica da operação e aos princípios da boa-fé tributária.

A tentativa de transformar cursos, mentorias ou serviços em “e-books” apenas para reduzir tributos caracteriza planejamento abusivo, sujeito à desconsideração fiscal, multas expressivas e, em casos graves, responsabilidade criminal.

Diante disso, empresas digitais brasileiras que buscam eficiência tributária devem optar por planejamentos transparentes e tecnicamente sólidos, que conciliem segurança jurídica, viabilidade econômica e conformidade fiscal.

O verdadeiro ganho competitivo na economia digital contemporânea não está em explorar brechas formais, mas em construir estruturas sustentáveis e legalmente defensáveis perante o fisco e o mercado.

Planejamento Tributário com Segurança Jurídica

Estratégias tributárias exigem muito mais do que criatividade formal. Exigem leitura técnica, substância econômica e respaldo jurídico real.

Na TelliCoJus, atuamos de forma estratégica na otimização tributária de empresas digitais, estruturando operações que reduzem a carga fiscal sem expor o empresário a autuações, multas ou riscos reputacionais. Cada projeto parte de uma análise profunda da operação, do produto e do modelo de monetização, respeitando os limites legais e a realidade econômica do negócio.

Se você atua com infoprodutos, cursos, mentorias ou serviços digitais e busca eficiência tributária com segurança, fale com nossos especialistas e descubra quais estruturas são juridicamente defensáveis para o seu caso.